quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
domingo, 6 de junho de 2010
O pequeno grupo de quatro pessoas encontrava-se na tenda termicamente isolada. estava mais calor no interior do que lá fora, mas ainda assim, era uma temperatura desagradavelmente baixa. Vladimir, Chiharu e Jane observavam Norberto desenhar um esboço do animal, com uma imagem em tons verdes à sua frente. Ele abanou a cabeça negativamente.
- Parece-me ser um Dinossauro... Melhor, um réptil de tamanho colossal...
- E qual é a diferença entre isso e um dinossauro? - perguntou Jane, curiosa.
- Bem, os Dinossauros não sobrevivem no gelo. - Informou ele. - Nenhuma espécie conhecida de dinossauro tem capacidade de sobreviver congelada...
- Há mais alguma coisa que viva dentro de um bloco de gelo? - perguntou Vladimir, incrédulo.
- Sim... Alguns anfíbios têm uma proteína anti-congelante no sangue, que os impede de morrerem, caso congelem quando hibernarem. - Contou o biólogo. - Mas até agora pensava-se que isso tinha um limite até ao qual impedia o sangue de congelar.
- Já pra não falar no tempo que aquilo ficou sem comer...- comentou Chiharu. - Recebi os resultados das analises do gelo perto da criatura... cerca de duzentos e quarenta anos...
Se os músculos da sua face não o impedissem, o queixo de Norberto teria caído com um estrondo no chão. Até mesmo Jane e Vladimir sabiam que nada conseguiria viver durante tanto tempo sem comer.
- Como... ? Isso é impossível... - sussurrou Norberto.
- Eu sei... - concordou o japonês. - mas estes são os resultados do terceiro teste que foi feito e todos deram o mesmo resultado. Se queres que seja mais preciso, aquilo está ali em baixo há pelo menos duzentos e trinta e seis anos.
Mas o que é aquilo! - Exclmaou Jane, sentando-se. - Ainda não o conseguiste classificar?
- Não... só sei que é um réptil... - afirmou Norberto.
Acabaram por se dirigir ao local onde ainda decorria as escavações, agora de uma maneira mais cuidadosa. Norberto pediu ao homem que manuseava a escavadora para parar, e desceu para o buraco. o silêncio que se fazia era estranho naquela zona. Apesar de ser Verão, era frequente haver um vento gélido e cortante. Norberto calculou que aquele fosso estivesse abrigado do vento.
Jane seguiu de perto. Logo atrás dela vinha o Russo. O japonês acabou por se deixar ficar para trás.
- Mais um pouco, e já devem ter tirado todo o gelo... - Comentou a americana.
Norberto acenou afirmativamente, e aproximou-se ainda mais do gelo. Agora conseguia adivinhar o som grave dos lentos batimentos cardíacos da criatura moribunda. Ele aproximou a cara do gelo.
- Parece... que a cabeça está aqui... - E bateu com o punho no elo, produzindo um som abafado.
Estava prestes a erguer-se de novo, quando algo o assustou. No sitio onde tinha batido, algo se moveu. Por baixo do gelo ele conseguia ver a cor avermelhada da criatura. De repente, uma fenda amarela horizontal abriu-se no vermelho escuro, até ficar arredondada. No centro da bola amarela estava uma fenda preta. Uma... pupila. Era o olho. Fitando-o. olhando-o com uma raiva contida durante séculos, um ódio inimaginável acumulado nos sonhos daquele sono pesado no frio continente. De tal maneira, que Norberto se deixou cair para trás. Só então é que Jane e Vladimir se aperceberam de que a criatura tinha acordado.
segundos depois, ouviu-se um som que Norberto nunca imaginara que o iria assustar tanto na sua vida. O som de algo a estalar. O som de gelo a quebrar sob os movimentos impetuosos de algo aprisionado há demasiado tempo para ter misericórdia, apenas com espaço na mente para a carnificina.
Jane foi a primeira a conseguir pensar e a puxar os dois homens para a ingreme parede do buraco. Treparam desesperadamente, ouvindo o gelo estalar cada vez mais, retorcer-se e cair no chão, à medida que o animal finalmente se libertava.
Quando finalmente chegaram lá acima, já centenas de pessoas observavam, atentas, na borda do buraco.
- Não, temos de ir! Corram, não fiquem aqui! - exclamou Norberto, suplicante, mas sem que o ouvissem.
As pessoas estavam demasiado curiosas e atentas ao que se passava para lhe ligarem. Jane, decidida, agarrou-lhe o braço e correu, seguida de Vladimir, em direcção à tenda. Pouco depois, aperceberam-se que Chiharu já vinha atrás deles.
Norberto olhou um pouco para trás, e paralisou. A criatura erguia-se agora do buraco. Já todos fugiam. A sua cabeça munida com dois chifres olhava, virando-se para um lado e para outro, para aquela cena quase cómica de humanos a correrem desalmadamente pela planície de gelo. As suas patas enormes e poderosas içaram-no para ora do buraco onde havia estado preso. Algo nos seus movimentos parecia forçado e lento, como se apreciasse a liberdade recém-redescoberta. Aquilo era muito maior do que o biologo e os geólogos julgavam. A sua cauda era também musculada e terminava em quatro ameaçadores espinhos gigantescos. Ao longo do seu dorso estavam mais espinhos, que eram maiores o centro das costas e mais pequenos junto à cabeça e ao fim da cauda. Abriu ligeiramente a boca, deixando ver uma fileira de dentes recurvados e afiados. Então, soltou o seu primeiro rugido. O ar vibrou de tal forma que eles se desequilibraram. A criatura continuou a rugir. Agora tinham de tapar os ouvidos, pois o som já tinha passado a barreira do doloroso. E os olhos de Norberto escancararam-se quando o animal estendeu as suas colossais assas, sustentadas pelos dedos finos e compridos de um terceiro par de membros. Os dedos encontravam-se unidos por uma membrana fina e bem irrigada. Norberto não podia acreditar nos seus olhos. Só faltava que aquilo cuspisse fogo.
- Que os deuses nos ajudem, mas acabei de ter uma ideia do nome que devíamos dar a esta espécie... Dragão. Que tal? - comentou Jane, com um humor sádico e sem graça.
-Acho que encaixa perfeitamente... - respondeu Norberto, ainda atónito com o que observava.
- Adorei a sessão de piadas, mas não acham que é melhor irmos? - Perguntou o Russo. - É que o vosso bichinho de estimação está a vir apara aqui!
Só então é que os outros três se aperceberam que aquilo era mesmo verdade. O Dragão estava a dirigir-se para eles. Não. Não era para eles, pensou Norbert. Claro que não. Ele dirigia-se para a costa. Para o mar. Para os continentes que fervilhavam de vida humana. Ainda assim, correram para dentro da tenda, com se aquele tecido os protegesse do colosso que se passeava no exterior.
- Regra de Ouro para quem vai para a antárctica. - disse Chiharu. - Nunca tente soltar do gelo algo que ainda esteja vivo. Não dá com nada...
De repente, ouviam um rugido lamentoso da criatura e o chão tremeu após um estrondo gigantesco. eles correram para fora, para ver o que se tinha passado.
Ir para o prólogo e capítulo 1
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Prólogo
As criaturas com armas afiadas deixaram-no exausto. Apenas queria tratar das suas feridas, poder viver em paz. Nem sequer sabia o que tinha feito de mal àquelas pequenas criaturas. Talvez por ter-se alimentado de alguns deles. Sim. Era a única coisa que ele tinha feito contra eles. Mas ali, as criaturas já não o conseguiam alcançar. Estava acima das nuvens, dirigindo-se para o Sul.
Algumas horas depois, o ar começou a arrefecer drasticamente. Começou a sentir os seus membros ficarem entorpecidos e as suas pálpebras a pesarem cada vez mais. Acabou por ter de aterrar desajeitadamente. Por baixo das suas patas sentiu a neve fria e compacta. o gelo ainda o adormecia mais. Optou por entrar numa gruta. Era uma simples gruta de gelo, cobrindo a rocha.
Quando a tempestade atingiu o local, ele já não estava consciente. Tinha entrado num estado de hibernação total. Os seus batimentos cardíacos lentos e débeis ecoavam pela gruta. Então foram abafados pelos silvos do vento. O gelo e a neve começaram a acumular-se, à sua volta, envolvendo-o num abraço de centenas de anos.
Capítulo 1
Antárctica, 20 de Dezembro de 2009
O grupo de geólogos aproximou-se do local de escavações. A sua tarefa era explorar as rochas perto de uma gruta recém-descoberta. Era um buraco na rocha, cheio de gelo compacto.
- Vamos começar a fazer as perfurações daqui a pouco. - Anunciou em inglês uma homem loiro de olhos azuis, encasacado. Praticamente nenhuma parte do seu corpo estava exposta ao frio cortante, excepto um ou outro fio de cabelo e parte da sua boca.
- Mas só depois de fazer-mos um plano da gruta, Matt. - completou uma das geólogas, de cabelos castanhos e olhos verdes, dirigindo-se ao loiro na mesma língua.
enquanto dizia isto, pousou uma pequena carga de explosivos na entrada da gruta.
- Não gosto de usar isso. Tem cuidado para não deitares a gruta abaixo, Jane. - Pediu um dos outros geólogos. O seu inglês tinha um sotaque estranho.
- Sim, Jane, tem cuidado para não afundares a Antárctida inteira com duas gramas de dinamite! - Gozou um homem, com sotaque claramente russo.
- Está descansado, Norbert. - Tranquilizou Jane. - isto é inofensivo.
O homem revirou os olhos.
- O meu nome é Norberto. - repreendeu ele, desta vez em português.
Apesar de ter falado na sua língua materna, ele foi compreendido pela mulher, que encolheu os ombros num falso pedido de desculpas.
Passado um pouco, a voz do russo pediu para que se afastassem. eles dirigiram-se para um homem asiático novo. Nas suas mão enluvadas repousava um aparelho de aspecto antigo e pesado, com um ecrã em tons verdes e pretos. Quando a dinamite explodiu, as cores moveram-se, para mostrarem o interior da gruta. O asiático aproximou o aparelho dos olhos, como se o que estivesse a ver o impressionasse.
-M...masaka... - gaguejou ele, em japonês. - Sugoi!
A surpresa deu lugar a excitação no seu rosto. Ele apontou para o ecrã, aproximando-o da cara de Norberto.
- Vê isto? O que é que acha? - Perguntou ele, desta vez em inglês.
Norberto abriu os olhos de espanto.
- Parece... um animal.. - sussurrou Jane. - Norbert, tu é que és formado em biologia... o que achas?
- Acho que é um réptil... ou pelo menos tem a forma de um... E avaliar pelo tamanho, deve ser um Dinossauro... acabámos de descobrir o primeiro fóssil congelado de dinossauro... - comentou ele.
Os geólogos ficaram a entreolhar-se, acabando por fitar a gruta. A mesma pergunta passava pela cabeça de todos: O que seria que estava dentro daquela gruta?
Quase todos estavam perto da escavadora, a observar o gelo a ser removido. O japonês ficara encarregue de vigiar quando é que estavam perto da criatura que haviam descoberto. Estavam a meio da gruta, quando o asiático voltou a aproximar exageradamente o aparelho dos olhos. Correu para o homem que estava a controlar a escavadora e pediu-lhe freneticamente que parasse.
- Que se passa, Chiharu? - Perguntou o russo.
- Vladimir, não vais acreditar... - respondeu ele.
Norberto e Jane aproximaram-se.
- A principio pensei que fosse por causa da escavadora a bater no gelo que fazia estas modificações, mas então, observei melhor, e, enquanto a escavadora esteve parada, a deformação das linhas manteve-se constante. - explicou Chiharu.
Ninguém pareceu compreender.
- Observa. - ordenou o japonês, entregando a aparelho a Norberto.
- sim realmente... consigo ver as deformações regulares que dizias... aparecem e desaparecem, sempre no mesmo sitio... Não sei o que poderia causar... Que os Deuses nos ajudem! - exclamou ele, caindo de joelhos, olhando para Chiharu.
O japonês riu-se histericamente, acenando com a cabeça para Norberto, concordando com o que ele estava a pensar. Os outros observaram o aparelho, sem perceber o que se passava. Até que Jane deslizou o dedo pelo ecrã verde e preto até ao local onde se podia de vez enquanto ver um ponto preto, de onde partiam depois linhas verdes quase imperceptíveis até quase a meio da gruta.
- Estranho... como se algo estivesse a ecoar sempre constantemente em intervalos regulares, como se fosse... O raio de um coração a bater! - Gritou ela. - Oh meu Deus! Está vivo! Aquilo ali em baixo ainda tem pulsação!
Agora também a geóloga tinha a boca escancarada. Vladimir ergueu uma sobrancelha, duvidoso, mas observando a reacção de todos os companheiros, acabou por perceber que aquilo era mesmo verdade.
Ir para o Capítulo 2
sexta-feira, 28 de maio de 2010
Ainda me lembro, como se fosse ontem. Não. Lembro-me como se tivesse sido ainda esta manhã. A manhã em que te conheci. Os teus longos cabelos sedosos esvoaçavam com a brisa marinha. Ali estavas tu, à beira da falésia, percorrendo o oceano com os teus olhos que reflectiam a cor das águas límpidas.
Corri para ao pé de ti, preocupado, pois poderias estar a pensar em deixar-te simplesmente cair para o vazio, em direcção às rochas afiadas lá em baixo. Quando te peguei pelo braço, olhaste-me indignada, erguendo uma sobrancelha.
"Que é que quer, deixe-me!" Exclamas-te.
"Impedi-la de fazer algum dispara-te." Retorqui, sem hesitar.
"O quê?" Então, o teu olhar iluminou-se com compreensão e depois com um pedido de desculpa. "Oh, não, eu não me ia atirar do penhasco... Estava só a contemplar o Oceano."
"A contemplar o Oceano?" Perguntei, ainda intrigado.
Tu sorriste calorosamente. Os teus dentes brancos e perfeitos contrastavam com os teus lábios carnudos avermelhados. Eu não pude deixar de sorrir ligeiramente, mas não te larguei o braço.
"O meu pai... Partiu para a América, à procura de uma vida melhor. E todos os dias fico aqui, à espera dele." Contaste-me, timidamente.
Eu soltei uma exclamação de compreensão e soltei-te finalmente o braço. Tu deste um passo para longe da beira da falésia, fazendo o meu coração pesar um pouco menos. Algo dentro de mim tinha medo de te perder.
"Se quiseres poso fazer-te companhia." Ofereci.
Tu acenas-te afirmativamente com a cabeça, e puxaste-me o braço, sentando-te no chão, de pernas cruzadas, a olhar novamente para o oceano.
Assim ficávamos, tarde inteiras, a conversar. Fomos conhecendo-nos cada vez melhor. Eu era o teu confidente, quem ouvia os teus segredos, e tu eras quem ouvia o meus. Mas no fundo sempre escondia o quanto te amava.
Tinham passado cinco meses, quando soubeste que o teu pai já não conseguiria voltar da América. preso, por ter tentado roubar. Sentias vergonha e ao mesmo tempo preocupação para saber como é que ele estava. Eu tentava arranjar coragem para te contar o quanto gostava de ti, mas não conseguia.
Muito tempo passou. Dois, três anos? Não tenho a certeza. O teu pai continuava longe e sentias-te cada vez mais abandonada. Um dia, quando fui ter contigo à falésia, não estavas lá. Esperei por ti o dia inteiro. Só chegaste à noite. Eu sentia que havia algo de muito importante que tinhas para me contar. No entanto não insisti no assunto. Pouco antes de te ires embora, aproximaste-te de mim, sorrateiramente. Os teus lábios tocaram os meus com ternura. Finalmente fui capaz de contar o que sentia por ti. E assim que te pude ter, escapaste-me entre os dedos.
"Amanhã vou apanhar o primeiro voo para os Estados Unidos... Vou ajudar o meu pai." Contas.te, timidamente, com medo da minha reacção.
Algo nessa viagem me fazia sentir inseguro. Um mau presságio? Sim. Um mau presságio.
A noticia atingiu-me o peito com uma dor física, no dia a seguir. O avião onde ias, caiu. No meio do oceano, sem sobreviventes.
Isso passou-se há cinco anos atrás. Desde então que continuo a vir à falésia. Todas as tardes, à espera que apareças. Ainda te sinto ao meu lado. O cheiro dos teus cabelos encostados ao meu peito. O aroma dos teus vestidos. A suavidade da tua pele nas minhas mão. A melodia da tua voz. Ainda te sinto presente nos meus sonhos. Os meus sonhos... Tornam-se pesadelos, onde te tento alcançar e não consigo. Já nem quando durmo consigo encontrar a paz.
Dizem que o tempo cura tudo? Ah... como se enganam. Nem mesmo o tempo conseguiu apagar-te do meu coração. Não. Eu já nem se quer tenho coração. Morreu contigo, está contigo no oceano. Tu levaste-o, sem hesitar, levas-te o contigo para sempre. E tu estás comigo, sempre, aqui, agonizando a minha existência, por mais que tente dizer a mim mesmo que já desapareces-te, que te desvaneces-te na espuma do mar que tanto observavas e que esperavas trazer-te a vida antiga de volta, o mesmo mar que, no final, te tirou a única vida que te restava.
Agora, aqui, á beira da falésia, só quero encontrar-e de novo, reunir-me com o meu coração. Então, deixo-me cair e sinto o vazio ficar cada vez mais pequeno. Sinto-me a aproximar-me do meu coração, a ficar mais próximo de ti. Já te consigo ver na água, a sorrir-me convidativamente. Sorrio-te de volta. As rochas aproximam-se cada vez mais depressa. Cada vez mais perto de ti, mais perto, mais perto...
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Epílogo
Acordei sobressaltada. Olhei à minha volta. Estava no meu quarto. Na minha casa. Saltei da cama. Não havia sinais nenhuns do desmoronamento. De queixo caído, corri para a sala. Estava intacta. Sem sinais de um Anjo ter entrado pelo telhado. Corri para o quarto de hóspedes. A janela não estava partida, como seria de esperar, depois da nossa fuga, quando Lilith ali entrara a meio da noite.
Corri para a cozinha. A minha mãe estava lá, a preparar o pequeno-almoço.
– Querida, estás atrasada par a escola. – Repreendeu ela, como sempre fazia.
Eu comi, sem conseguir dizer uma única palavra. A única conclusão que eu podia tirar era que tudo aquilo havia sido um sonho. Bem… Isso era bom. Mas tinha sido tão real… Sorri pela primeira vez. A minha mãe sorriu-me também e voltou a pedir-me que me despachasse.
O dia de escola correra excepcionalmente bem. Era bom saber que tudo aquilo do apocalipse, os quatro cavaleiros, a Ceifeira, os Anjos, Lilith, os demónios vampiros não passara de um pesadelo. Estava a caminho de casa quando me apercebi que alguém estava atrás de mim. Girei rapidamente, pronta para criar uma bola de luz, caso a pessoa que estivesse ao meu lado tivesse más intenções.
O meu coração falou um batimento, quando viu o rapaz de cabelos castanhos e olhos cor de avelã, como os meus, sorridente. Ele aproximou-se.
– Olá. – Cumprimentou.
– A… Alexandre… – Gaguejei. – Então…aquilo, foi tudo real?
Ele acenou afirmativamente, mas desta vez os seus olhos estavam tristes.
– Tinha medo que não te lembrasses de nada… – Sussurrou.
Eu revirei os olhos.
– Caramba… O que é que aconteceu depois de o Cavaleiro ter feito desabar as colunas, no Vaticano?
Ele sorriu.
– Voltou tudo ao normal. Falei com Ele… Concordou em fazer tudo ficar como estava antes… Ninguém que seja humano se lembra do que se passou…
Eu sorri. Era como se aquilo nunca tivesse passado de um mau sonho. Corri para ele, e abracei-o. Estava feliz por não ter morrido e também por todos os outros que tinham morrido pelo caminho também estavam vivos.
Mas então surgiu-me uma dúvida.
– Como é que O conseguiste convencer? - Perguntei, curiosa.
-É uma longa historia... - Respondeu, sem completar o que ia dizer.
Capítulo 6: Reunião com a Morte
Sentei-me cautelosamente no sofá. Anabela fez o mesmo. Carlos manteve-se de pé, com a lança apontada a Layla. Ela olhou-o, esperando que ele baixasse a arma. Como não o fez, começou a falar.
– Então, o que é que vocês andavam a fazer, a fugir da Lilith?
– A tentar manter-nos vivos. – Sibilou Carlos.
– E se não fosse eu, quase que falhavam o vosso objectivo…
Eu observava-os, em silêncio. Eu simplesmente não conseguia articular nenhuma palavra.
– E porque é que nos ajudas-te?
– Porque quero manter-me… viva.
A hesitação que ela fez na frase fez-me perceber que os Ceifeiros não estavam mortos. No entanto, também não estavam vivos. Eles eram a própria morte. Carlos contou-me, mais tarde, que os Ceifeiros apenas se encarregavam de recolher almas de pessoas assassinadas ou mortas por causas anormais, como acidentes de viação. E não havia apenas um: havia bastantes. No entanto mantinham-se invisíveis, para não serem detectados pelos homens.
Layla aproximou-se de mim, fazendo-me encolher. Ouvi a corda do arco de Anabela ser puxada, pronta a disparar uma flecha.
– O que é que se passa lá fora? – Perguntou, Anabela, suplicante. – Temos o Céu e o Inferno atrás de nós…
Layla olhou-a.
– Bem-vinda ao meu mundo, rapariga. – Respondeu a Ceifeira. – Habitua-te. Para onde é que se dirigiam?
– Até ao Vaticano. – Informou Carlos. – Vamos pedir ajuda lá. Deve ser um mal entendido, termos Anjos atrás de nós.
A mulher de vestido vermelho mordeu o lábio, como se soubesse que Carlos estava errado no que dizia. Ele apercebeu-se disso.
– O que é que se passa? – Inquiri, timidamente.
– Não têm ouvido as notícias? – Exclamou Layla.
– Nem por isso, temos estado mais ocupados a tentar não morrer. – Retorquiu Anabela.
– O Vaticano foi destruído. Segundo os humanos, um meteoro…
Nenhum de nós conseguiu perguntar o que e que tinha atingido Roma. Ela deixara bem claro que não tinha sido algo tão simples como um meteoro.
Carlos estava prestes a perguntar o que se passava, quando se ouviu um Estrondo imenso. Uma luz brilhante ofuscou-nos. Corremos para a janela, para ver o que se passava. No prédio em frente, conseguíamos ver um buraco fumegante. Do seu interior, um homem alado fitou-nos.
– Baixem-se! – Berrou Layla.
A sua ordem foi obedecida quase instantaneamente, mesmo a tempo de nos salvar dos estilhaços de vidro que voaram pelo quarto, consequência da bola de luz que o atacante nos tinha laçado.
Olhei para cima. Das costas de Layla saía agora um par de asas cobertas de penas negras. Ela impulsionou-se para a frente, invocando a foice. O Anjo voou na direcção da Ceifeira, brandindo a espada envolta em luz. A mulher defendeu-se habilmente com a foice e empurrou-o um pouco para longe. O Anjo lançou uma bola de luz contra Layla, que se desviou. O poder que emanava daquelas duas criaturas era imenso. Anabela, eu e Carlos desviamo-nos para o lado, quando a bola de luz perdida atingiu o edifício onde estávamos. Vi faíscas e vigas metálicas cair ameaçadoramente perto de nós. Quando me voltei a focar na luta entre a Ceifeira e o Ano, apercebi-me que ela estava perder terreno. As suas asas negras já quase embatiam na parede do hotel danificado. Lá em baixo começava-se a ouvir as primeiras sirenes.
Anabela apontou o arco para a confusão de movimentos rápidos trocados entre o anjo e Layla. Assim que vi a luz a brilhar na flecha, atirei-me contra a rapariga.
– Não! – Ordenei. – Vais matá-la!
Anabela olhou-me. Ela não precisou de dizer uma única palavra para eu entender que ela não se importava de sacrificar a ceifeira. Eu devolvi-lhe um olhar de reprovação.
Pouco depois, ouvi vidros a estilhaçarem-se do outro lado da rua. O Anjo tinha entrado pelo prédio da frente a dentro, atirado por uma criatura que parecia não ter matéria, aparentava ter a densidade do ar. Paralisei quando me apercebei que o que eu acabara de ver era uma alma. Layla aproximou-se de nós. A sua cara estava decidida, sem dizer uma única palavra, puxou Carlos para perto de mim e de Anabela e teletransportou-nos dali.
Eu ainda não tinha percebido bem o que tinha acontecido até me aperceber que estava no meio de uma praça larga. Há minha frente uma gigantesca Catedral erguia-se imponentemente, causando uma sensação de inferioridade nos seus observadores. Há nossa volta estava uma construção, composta por dezenas de colunas, formando um circulo à nossa volta, fazendo lembrar um templo romano. No cimo do telhado de pedra que cobria as colunas, podiam observar-se várias estátuas de pessoas que me apreciam familiares. Carlos estava de queixo caído.
– Eu não acredito… Estamos na Praça de São Pedro!
Olhei para ele, também incrédulo. Mas então, reconheci a Catedral. Na verdade era a Basílica que eu já vira em algumas fotografias. A Basílica de São Pedro, no Vaticano. Mas aquele espaço parecia estar estranhamente vazio. Não havia ninguém a passear, nem mesmo turistas.
– Algo está errado… comentou Anabela.
Eu acenei afirmativamente. Foi então que os vimos. Quatro Cavaleiros a aproximarem-se, vindos da Basílica. Um montava um branco como a neve, o outro num cavalo vermelho, da cor do sangue. O Terceiro estava em cima e um cavalo castanho-escuro, quase negro. O último, tinha uma cara esquelética e a sua montada, de um branco esverdeado, parecia estar terrivelmente doente. Eu reconheci-os.
– Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse!? – Exclamei.
– Conquista, Guerra, Fome e Pestilência… – nomeou-os por ordem, Carlos.
– O apocalipse… é isso que está a acontecer. – Sussurrou Anabela.
O Cavaleiro que se encontrava à frente, apontou-nos o seu arco. Corremos para o abrigo das colunas. A flecha que atingiu o chão tina o tamanho de um torpedo.
– Caramba, eles são enormes! – Comentei.
Até então pensava que eles estavam mais perto, devido ao seu tamanho, mas agora percebia que eles ainda estavam bastante perto da Catedral: quase do outro lado da Praça onde estávamos.
Quando nos abrigámos, apercebi-me de um movimento ao fundo do corredor de colunas. Um homem aproximou-se, cautelosamente. Mas eu reconheci-o. Desembainhei instintivamente a espada, surpreendendo os meus companheiros, que ainda não se haviam apercebido daquela presença.
– Afasta-te. – Ordenei. – Eu sei o que és tu.
Carlos Parecia muito mais surpreendido.
– Baixa a arma. – Pediu-me o meu amigo. – Não vais conseguir combatê-lo. Ele é o Arcanjo Miguel, o general da Armada Divina.
– Como é que o reconheceste? – Perguntou Anabela.
– Ele… Apareceu nos meus sonhos… – Respondi, hesitante.
O Arcanjo aproximou-se. Então Anabela pareceu lembrar-se de algo.
– Meu Deus… Lembraste do que é que o Arcanjo Gabriel disse quando entrou em minha casa, antes de nos tentar matar?
– Não. – Sibilei, erguendo uma sobrancelha.
– “Que Rafael e Miguel me perdoem”. – Começou ela. – Ele referiu Rafael porque é o meu Pai. Alexandre, aquele é o teu pai…
O meu coração falhou um batimento. O Arcanjo já estava próximo o suficiente para ouvir a nossa conversa e sorriu, como que confirmando a versão de Anabela. Olhei de novo para ele. Eu não conseguia ver as suas asas em lado nenhum.
– Alexandre… – Chamou ele. – O Pai quer exterminar os Humanos. Não há forma de impedir o apocalipse de acontecer.
– Tem de haver. – Gaguejei. – Porque é que Ele quer fazer isto?
– Os humanos têm criado muita guerra e destruição. O planeta está a morrer. Deus quer acabar com isso, impedir que matem completamente tudo o que existe neste mundo, todas as outras criações. – Explicou o Arcanjo Miguel.
– Então porque é que me ajudaste?! – Acusei.
– Porque sei que há pessoas neste mundo que não merecem morrer. É por isso que te peço que fales com Ele.
– Mas como? – Perguntei.
Ele apontou para a basílica. Os Cavaleiros estavam a aproximar-se cada vez mais.
Anabela
Alexandre ficou a observar a Basílica de São Pedro. O meu coração parou quando ele começou a correr na direcção dos cavaleiros do Apocalipse. Carlos e eu chamámo-lo, mas sem êxito. O Arcanjo sorriu e esfumou-se no ar. Afinal era apenas uma imagem dele.
Carlos começou a correr atrás do meio-anjo, mas eu agarrei-lhe o braço. Ainda assim, saímos de debaixo do telhado que cobria as colunas, e pudemos observar o céu. Um enxame de Anjos voava em círculos, na periferia da Praça. Alexandre continuava a correr, sem olhar para cima. Vi-o atirar-se para o lado, para se desviar da flecha lançada por Conquista. Poucos segundos depois, o Cavaleiro da Guerra já estava quase a atingi-lo com a sua imensa espada, mas ainda assim, conseguiu desviar-se. Continuou a correr, evitando os cascos do cavalo montado pelo Cavaleiro da Fome por um triz. Pestilência não se deixou ficar para trás e tentou, em vão, atingir Alexandre com a sua foice. A pedra que fora atingida pela arma ficou corroída, como se tivesse sido banhada com ácido.
Eu simplesmente observava, sem poder fazer nada. Finalmente, ele conseguiu entrar dentro da Basílica. Os Cavaleiros tentaram segui-lo, mas eu tentei dar mais tempo ao meu amigo, disparando uma flecha envolta em luz contra o cavaleiro mais próximo. De seguida comecei a correr, de ovo para o abrigo das colunas. Apercebi-me, tarde de mais que fora uma má ideia. O cavaleiro que empunhava a espada deitou abaixo uma das colunas, que foi caindo para cima da seguinte, e essa caiu para cima da outra, num efeito dominó, até chegar a mim e a Carlos, fazendo desabar toneladas de pedras por cima de nós. Então, ficou tudo negro.
Capítulo 5: Os Filhos de Lilith
Algum tempo depois de termos percorrido a estrada, encontramos uma vila. As pessoas pareciam simpáticas e hospitaleiras. As casas não costumavam alcançar mais de três andares e a grande maioria era feita de madeira ou de pedra pintadas de branco. Não demorámos muito até encontrarmos um motel onde ficássemos. Enquanto eu e Anabela nos dirigimos para os quartos, Carlos e Gabriela foram explorar a vila, procurando informações sobre acontecimentos estranhos que pudessem ter ocorrido.
Não tinha passado nem uma hora quando ambos voltaram. Gabriela tinha um sorriso satisfeito no rosto. Carlos, no entanto, parecia preocupado.
– Descobriram alguma coisa? – Interrogou Anabela, dando voz aos meus pensamentos.
– Sim. – Respondeu a Caçadora, parecendo… demasiado alegre.
– Não são boas notícias. – Comentou Carlos, revirando os olhos.
– Claro que são. – Retorquiu Gabriela. – Temos alguma coisa para caçar.
Eu e Anabela entreolhámo-nos. Afinal não eram tão boas notícias. A última coisa que nós devíamos fazer era chamar a atenção. Entrámos num dos quartos. Aquela divisão já tivera melhores dias. A carpete que cobria o chão estava manchada em tantos sítios que era impossível identificar a cor original do tecido. A cama tinha um aspecto velho e estava coberta com lençóis encardidos. Eu e Anabela torcemos o rosto, enojados. Gabriela parecia sentir-se em casa.
– Tu estás habituada a isto… – Comentou Anabela. – E o que é que temos de caçar?
– Bem… Nestes últimos tempos as criaturas das trevas têm andado mais activas. – Começou a Caçadora. – E esta cidade tem visto as suas pessoas desaparecer misteriosamente.
– Podem ter-se ido embora deste fim do mundo. – Acusei.
– Claro, e pelo caminho perderam todo o sangue dos seus corpos. – Rematou Gabriela, deixando-nos sem resposta. – Um dos desaparecidos foi descoberto sem pinga de sangue. Ora, até vocês devem saber o que é que faz isso.
– Mas… – Argumentou Carlos. – Os vampiros estão extintos.
– Pois… isso é o que acho mais estranho. – Continuou ela. – Mas foram de facto vampiros.
Carlos pareceu paralisar. O terror manchava a sua face e olhava para mim e para Anabela. Eu e ela não percebíamos no que é que ele estava a pensar.
– Pode não ter sido um vampiro… – Sussurrou Carlos.
– Pois… – disse Gabriela, pensativa. – Pode ter sido um demónio. Só conheço um tipo de demónio que age como um vampiro, até porque foi esse tipo de demónio que deu origem a esses sugadores de sangue.
Carlos acenou afirmativamente.
– Vocês não sabem como se chamam esses demónios? – Inquiriu Carlos, preocupado.
Eu e Anabela mantivemo-nos inexpressivos, mas um medo começava a apoderar-se de mim. Algo não estava bem.
– São os Filhos de Lilith. – Informou Gabriela sorridente.
O meu coração parou. Anabela levantou-se de um salto da cama onde entretanto se tinha sentado. Carlos olhou para nós tristemente. Quando a Caçadora observou a cena, perdeu o seu sorriso.
– Espera… Vocês sabiam que eles estavam aqui? Como?
– Temos de nos ir embora. – Disse Anabela, rapidamente. – Não podemos ficar aqui nem mais um minuto.
Ouvimos um estalido metálico.
– Não sem me explicarem o que se passa aqui. – Ameaçou Gabriela, apontando-nos com o revólver de tamanho demasiado grande para a sua mão.
Ela manteve-se firme, sem mover um músculo e foi Carlos que acabou por ceder primeiro.
– Encontraste-nos na estrada porque estávamos a tentar fugir de um demónio.
Ela baixou a arma.
– Ah. – Disse ela, de novo sorridente. – Já podiam ter dito que andavam a ser perseguidos por um Filho de Lilith. Vocês até matavam um com facilidade.
O rosto de Carlos ficou mais sombrio.
– Não. Nós estávamos a fugir da própria Lilith. – Disse ele.
Aí, aconteceu algo que eu nunca esperava ver. Em vez de nos matar ali, enraivecida, Gabriela deixou-se levar pelo medo. Era a primeira vez que ela expressava terror na sua cara. A arma caiu-lhe da mão e ela agarrou numa mala.
– Eu não acredito. Vocês têm a própria Lilith atrás de vocês. Mas como é que é possível?
A sua pergunta não obteve resposta. Pouco depois saímos do quarto do motel. Já estávamos prontos para partir. Enquanto caminhávamos, Carlos contara-me a razão pela qual os demónios que davam origem aos vampiros eram chamados Filhos de Lilith. Nos seus primeiros tempos como demónio, ela alimentava-se do sangue de bebés. Essas crianças, quando cresceram, tornaram-se maléficas e poderosas. De tal maneira que foram exiladas para o Inferno, e esquecidas pelo mundo terreno. O tempo que eles passaram no local do seu exílio transformou-os em demónios. Assim, quando voltaram, alimentaram-se de sangue, tal como Lilith fizera. E assim nasceu uma nova espécie. Segundo Carlos, isto tinha ocorrido há milhares de anos atrás, ainda na altura que os humanos se estavam a começar a povoar a Terra.
Parecia estar tudo a correr bem, mas assim que a noite caiu e estávamos sozinhos na estrada, sentimo-nos agitados. Talvez o melhor fosse mesmo termos ficado no hotel. A minha mão mantinha-se colada ao punho da espada, pronta a desembainhar a arma afiada. As raparigas iam ainda mais longe, já que ambas empunhavam as suas armas de longo alcance e apontavam para os sítios onde julgavam ter visto algo mexer-se. Apesar de tudo isto, eu começava a sentir sono. Acabei por sucumbir ao cansaço, deixando-me cair. Alguém me amparou a queda, mas já não me apercebi de quem fora.
Voltei a sonhar. Era o mesmo Anjo do sonho que me tinha avisado sobre Lilith. Ele olhou-me com tristeza e preocupação. Era a primeira vez que eu via aquela expressão no rosto de um anjo que estivesse a comunicar comigo.
– Corre. Antes de o corvo se aproximar, corram como nunca antes fizeram.
O Anjo estava prestes a desaparecer, quando lhe gritei.
– Porquê?! Porque é que nos ajudas?! Nós estamos condenados!
Não obtive resposta, pois fui acordado por uma dor aguda no rosto.
– Eu disse que ele estava a dormir. – Comentou Gabriela, erguendo-se.
Anabela segurava-me a cabeça e Carlos estava ao meu lado, de joelhos. Ambos olhavam chocados para a Caçadora.
– Não era preciso dares-lhe uma chapada! – Refilou a rapariga de olhos verdes.
O meu queixo caiu. Então era por isso que me estava a doer a cara. Eu ergui-me de um salto, mas arrependi-me de seguida. Fiquei tão tonto que Anabela teve de me segurar de novo. De repente começámos a ouvi um roncar estranho ao longe. Eu desembainhei a minha espada. Anabela e Gabriela pegaram nas suas armas e apontaram-nas para a direcção do som. Carlos fez a lança girar entre os dedos, surpreendendo-me com a sua habilidade de manusear uma lança. Ele sorriu-me.
– Os Anjos com Lança são os piores... – Avisou.
O ronco aumentava de volume. Pouco depois apareceram as luzes do camião. Parecia um pouco deslocado. De repente, mais luzes firam ligadas no tejadilho do veiculo. Agora dava-lhe o aspecto de um…jipe enorme. Abri os olhos de espanto.
– Eu não acredito. – Gaguejei. – É um Monter Truck!
Corri para o carro gigantesco. Era tal e qual os que tinha visto na televisão. A carroçaria e chassis de uma carrinha de caixa aberta, com as rodas de um camião e suspensões maiores do que um homem adulto. O diâmetro do pneus era do mesmo tamanho que eu com os braços abertos e esticados para cima. A traseira estava coberta com um pano preto, que deixava ver arestas estranhas e suspeitas. O carro emanava o espírito da América, ajudado, não só pelo seu tamanho, como também pela sua pintura: réplica prefeita da bandeira dos estados unidos. O homem no seu interior parecia ter um ar duvidoso e, através da janela abeta, apontava-me um… canhão de mísseis anti-aéreos! Senti o coração cair-me nas mãos. O homem olhava-me comum olhar de aço. Literalmente de aço: os seus olhos eram cinzentos. A sua cara tinha uma cicatriz longa, que ia da testa, passava incrivelmente perto do olho e chegava ao queixo. O seu braço musculado metia medo só por si, mas com aquela arma na mão era a personificação do assustador. Arreganhava os dentes, prendendo um palito entre eles. Usava um corte de cabelo que sugeria que era um militar.
– Quem és tu, miúdo? – A sua voz era grossa e autoritária. O ligeiro sotaque americano dava-lhe ainda mais austeridade.
Eu tentei gaguejar o meu nome, mas não fui capaz. Ouvi um estalido metálico atrás de mim.
– Jonathan – Cumprimentou a voz da Caçadora nas minhas costas. – És a nossa boleia para casa.
– Nem penses! – Berrou ele. – Não entras de novo no meu carro. Da última vez quase o atiraste por um penhasco abaixo.
– Sou só eu que estou a ter um déjà-vu? – Comentou Carlos, fazendo Gabriela fuzilá-lo com o olhar.
– E já disse. – Continuou o americano. – Para ti eu sou o Senhor Raven.
Olhei para Gabriela. Ela respondeu à pergunta que me passava pela cabeça.
– Este é o Jonathan Raven, um Caçador americano. – Conhecemo-nos há dez anos no Arizona.
Olhei para ele, confuso. Dez anos? Quer dizer que ela tinha estado na América com cinco anos, se tivesse a minha idade.
– Dez? Que idade tens? – Interroguei.
– Mais do que tu. – Afirmou ela, sem adiantar mais nada.
Voltei a olhar para o homem. O seu cabelo fazia justiça ao seu apelido. “Raven” era corvo em inglês. A cor dos cabelos de Jonathan eram da mesma tonalidade que as penas do animal. Quando constatei isso, a minha mente bloqueou nas palavras do Anjo: “Antes de o corvo chegar…”
– Corram! – Gritei.
O único efeito que consegui foi que todos olhassem para mim espantados, por não estarem à espera daquela reacção. Eu estava prestes a agarrar a mão de Gabriela, quando ouvi algo que me fez gelar. O silêncio que se tinha gerado fora quebrado pelo som de um sapato feminino a pousar no chão. Até podia adivinhar que eram botas pretas. Virei-me lentamente para trás. Anabela e Carlos não a viam porque estavam virados para mim, e, portanto, de costas para ela. Jonathan e Gabriela também não a detectaram, pois estavam virados de lado, um para o outro. No entanto foram eles os primeiros a vê-la. Logo a seguir a mim. Uma brisa arrepiante soprou, fazendo os cabelos cor de prata da recém-chegada esvoaçar ameaçadoramente. Ela sorriu de forma sedutora. Jonathan soltou um guincho assustado. Anabela e Carlos ainda não se tinham virado, mas já se tinham apercebido que algo que estava por trás deles nos assustava. Ele foi o primeiro a aperceber-se de quem era, melhor, do que era, sem ter de olhar para trás.
– Deram-me tanto trabalho para vos encontrar. – Suplicou falsamente Lilith. – Não se iam já embora, pois não? Eu só vos queria apresentar aos meus filhos…
O seu sorriso mudou de sedutor para… maléfico. Anabela deu um salto para a frente, dando uma pirueta e apontando o arco para o Demónio. Carlos estava simplesmente paralisado. Parecia olhar para mim, mas então, apercebi-me que ele olhava para trás de mim. Pelo canto do olho, vi um demónio. Tinha o aspecto de uma múmia magra, com asas de morcego gigantescas a saírem das suas costas. Os caniços brancos e afiados davam a impressão que me podiam furar de um lado ao outro. Sim, de um lado ao outro, já que o mais pequeno dos três demónios que estavam atrás de mim tinha pelo menos a altura do monster trunck que estava estacionado ao meu lado.
Gabriela saltou para o veículo, que se pôs em movimento. Anabela desviou-se do caminho do monster trunk. Jonathan estava a apontar para Lilith. Ele ia tentar atropelá-la! Tentei gritar para parar. Carlos baixou-se de repente, puxando Anabela consigo, quando a mulher de cabelos prateados ergueu a mão. Uma onda distorceu o ar. O carro foi atirado, e embateu na estrada, violentamente. Ouvi o estrondo ensurdecedor do metal a ser amachucado, baixando-me também, quando me apercebi que havia bocados de chapa a voar em todas as direcções. Pouco depois uma explosão iluminou a noite. Eu apenas conseguia olhar para o esqueleto do carro em chamas. Gabriela e Jonathan estavam ali dentro. Eu podia adivinhar os contornos dos seus corpos carbonizados. Lilith riu-se com prazer. Isso fez-me olhar de novo para ela. Os demónios que me cercavam já estavam de novo no meu encalço. Dei um golpe com a espada, cortando o braço de um que me tentava agarrar. Aproveitando o impulso desse movimento, atirei uma bola de luz com a outra mão contra a cara do meu atacante. Já outro me tentava alcançar, mas uma flecha trespassou-lhe a cara, rebentando em luz, abrindo a cabeça do demónio ao meio. Aproximei-me de Anabela. Carlos ainda se mantinha acocorado, com a lança pronta a proteger-nos. Lilith começou a aproximar-se. Ela estava prestes a falar, quando uma voz suave a interrompeu.
– Não vou permitir que o faças. Não os vais matar.
– Layla… – Sussurrou Lilith, claramente irritada.
Até então não tinha me tinha sequer apercebido da presença daquela mulher. Mas assim que ela passou por mim, senti frio. Um frio de morte, como se a minha vida estivesse a ser sugada por ela. Os seus cabelos negros ondulavam calmamente, como se uma brisa de verão passasse entre ele. Os seus olhos azuis-claros eram profundos e hipnotizantes. O seu vestido vermelho chegava até um pouco abaixo dos joelhos, rasgado nas bordas, como se já fosse bastante antigo. Os seus lábios estavam tingidos de um vermelho escuro, retorcidos num sorriso de troça. Carlos arrepiou-se ao vê-la.
– Vai-te embora Lilith. – Ordenou Layla, num tom de falsa súplica.
– Nem penses! As vidas deles são minhas.
– Não. Todas as vidas são minhas. – Corrigiu a recém-chegada. – Como te atreves a desafiar-me?
Para minha surpresa, Lilith recuou um passo, hesitante. Uma bola negra apareceu na mão dela. Layla pareceu aceitar o desafio, e estendeu a mão. A manga do seu vestido era larga, com aspecto medieval. O que se seguiu gelou-me o sangue. Agora percebia porque é que a nossa inimiga tivera aquela reacção. Nem mesmo um demónio se atreveria a desafiar a morte! Na mão que outrora estava vazia, surgiu uma foice. O cabo era de madeira negra e estava envolto em sombras esvoaçantes. A lâmina cinzenta sorria perversamente, com o brilho vermelho de sangue recente. Deixei-me cair no chão, impotente. Lilith lançou a sua bola negra, que foi facilmente desviada por Layla.
– Sai daqui. – Desta vez era mesmo uma ordem. Lilith afastou-se, esfumando-se no ar. Mas algo me dizia que ela voltaria a tentar. E desta vez com mais poder.
Layla aproximou-se. Carlos foi o único com coragem para se erguer e enfrentar a mulher que se aproximava. Agora que a observava melhor, reparei que os olhos dela estavam pintados de negro à volta, tornando a sua ara sombria. Mesmo em repouso, os seus lábios mantinham o mesmo sorriso perverso da lâmina da arma que empunhava. Ela aproximou-se, no seu andar bamboleante e cumprimentou Carlos.
– Há quanto tempo… Já lá vai algum tempo desde da última vez que me entregaste uma alma…
Anabela espreitou pelo canto do olho para o meu amigo. Eu não conseguia tirar os olhos de cima de Layla. Ela… fascinava-me. A sua foice voltou a desaparecer, envolta em sombras, que s pareciam estranhamente humanas.
– Porque é que nos estás a ajudar? – Perguntou Carlos, obviamente desconfiado.
– Não vos estou a ajudar. – Ripostou ela. – Estou a ajudar-me a mim.
– Pois… – Comentou ele. – Esqueci-me que os Ceifeiros só trabalham para si próprios…
Observei-os mais um pouco. Pareciam já se conhecer há algum tempo. Claro… Carlos tinha sido um Renegado antes de ser humano. E antes disso tinha sido um Anjo que matara alguém sem autorização. Anabela fitou a Ceifeira.
– Eu explico-vos melhor, mas antes, venham comigo para um local mais abrigado.
Ela aproximou-se, e tocou-me. A sua pele era tão fria que o meu braço adormeceu logo, como se o tivesse mergulhado numa banheira de nitrogénio líquido. À nossa volta a paisagem começou a ficar desfocada, e a rua fumarenta deu lugar a um quarto de hotel, iluminado por luzes amareladas e com uma vista sobre uma cidade cujo nome eu ignorava. Assim que senti os pés assentes no chão, libertei-me das garras de Layla, afastando-me um passo, cautelosamente. Ela sorriu e fez um convite com o braço para que nos sentássemos no sofá de pele clara que se encontrava no centro da divisão.